"Untitled #96" (1981)
Cindy Sherman e Rachmaninoff
Na exposição de Cindy Sherman que visitei em Serralves, com a minha turma senti um certo desconforto, mas ao mesmo tempo senti-me intrigado, assim que vi exposto o quadro “Untitled # 96”. Esta obra apresenta a artista vestida com um traje que evoca uma época passada, possivelmente, meados do século XX. A sua pose dramática e a expressão séria e concentrada do rosto criam uma atmosfera que parece invocar personagens de peças de teatro românticas.
Se bem que mais de sessenta anos anterior à personagem fotografada, o período histórico do romantismo é conhecido por valorizar a emoção, a individualidade e a imaginação, e é representado na música pelo movimento romântico, que se desenvolveu principalmente durante o século XIX. Um dos compositores mais importantes desse período foi Sergei Rachmaninoff, cuja música apresenta uma qualidade dramática e emotiva que se conecta com a imagem de Sherman.
Uma obra musical que me faz lembrar bastante este quadro, é o Concerto para Piano No. 2 em Dó menor de Sergei Rachmaninoff - https://youtu.be/rEGOihjqO9w. Este concerto, composto entre 1900 e 1901 é uma peça musical intensa e apaixonada, famosa pela sua execução virtuosa e pela sua melodia envolvente. A música tem uma qualidade teatral e performática que chama a atenção para a expressão individual e a emoção, evocando a mesma qualidade presente na imagem de Sherman.
Ao ouvir essa música, podemos imaginar a figura de "Untitled #96" dançando ao som das melodias, transportando-nos para um mundo de paixão, emoção e imaginação. Ambas as obras compartilham uma qualidade poética intensa que nos leva a refletir sobre a natureza da expressão artística e da emoção humana, assim como sobre o quanto são intemporais e transversais a todas as gerações a consciência e o sentimento românticos.
Tomás Maia, março 2023
Cindy Sherman é uma fotógrafa e artista americana conhecida pelos seus retratos conceptuais nos quais se transforma em vários personagens / personas. Uma das suas obras que pode ser relacionada com o conceito de metamorfose é a série "Untitled Film Stills", que ela criou no final dos anos 70 e início dos anos 80.
A série "Untitled Film Stills" consiste em 69 fotografias em preto e branco que apresentam Sherman retratando diferentes personagens femininas em várias situações cinematográficas. Nessas imagens, Sherman t
.ransforma-se em diferentes personas por meio de figurino, maquiagem e pose, confundindo a linha entre realidade e ficção. Por meio dessa transformação, Sherman explora as formas pelas quais a identidade é construída e como ela pode ser manipulada por meio da mídia e dos tropos / variações culturais.
De certa forma, a série “Untitled Film Stills” pode ser vista como uma representação visual do conceito de metamorfose, pois Sherman está constantemente a transformar-se em diferentes personas e explorando a ideia de identidade como algo fluido e mutável. Cada fotografia da série é um instantâneo de um momento em que o sujeito está em estado de transição, passando por uma transformação de uma identidade para outra.
No geral, a série "Untitled Film Stills" de Cindy Sherman pode ser vista como uma exploração do conceito de metamorfose, tanto em termos da transformação visual da personalidade do modelo quanto da exploração concetual da identidade e representação que sustenta o trabalho desta artista plástica.
Rita Macide, março 2023
Cindy Sherman é uma das artistas mais importantes e influentes da fotografia contemporânea.
A obra dela, destaca-se pelo seu caráter altamente performativo, caracterizado por autorretratos que exploram questões de identidade, género, representação e poder.
Uma das obras mais marcantes de Sherman é a série “Untitled Film Stills”, produzida entre 1977 e 1980. Nessa série, a artista criou uma coleção de imagens que evoca o cinema dos anos 50 e 60, representando cenas que poderiam ter saído de um filme “noir” ou de um drama psicológico. As imagens são em preto e branco e Sherman aparece em todas elas, interpretando diferentes personagens femininos.
O que é mais interessante na obra de Sherman é a forma como ela subverte as expectativas do espectador. Em vez de se limitar a representar estereótipos femininos, Sherman cria personagens complexas, cheias de ambiguidade e contradição. Ela também desafia a noção de que a imagem fotográfica é um reflexo objetivo da realidade, criando imagens que são claramente construídas e encenadas.
A série “Untitled Film Stills” é particularmente impactante porque aborda questões importantes em relação à representação feminina no cinema e na cultura em geral. Ao criar essas imagens, Sherman não apenas comenta sobre a forma como as mulheres são representadas na mídia, mas também questiona as próprias expectativas que temos sobre a feminilidade.
Em resumo, a obra de Cindy Sherman é uma reflexão profunda e significativa sobre a natureza da representação e da identidade. As suas imagens desafiam-nos a repensar as nossas próprias expectativas e preconceitos em relação ao género e à aparência, abrindo novas possibilidades para a expressão artística e a compreensão da cultura contemporânea.
A peça musical com que sempre relaciono a arte da Cindy Sherman são Quadros de Uma Exposição de Mussorgsky.
Tal como a arte dela, esta peça é cheia de contrastes e quando a ouço sempre que começa a variação seguinte, sinto como se as fotos dela aparecessem na minha mente.
Andrej Savic, em março de 2023
"Untitled #114" (1982)
O olhar por detrás das cortinas
Na coleção de obras de Cindy Sherman “Metamorfoses”, a artista põe-se no papel de várias personagens caricaturando e criticando: marcas de roupa, patrocinadores... Cindy Sherman cria cenários tanto nas suas obras como na sala onde essas obras serão expostas, preocupando-se com todos os detalhes como por exemplo a cor das paredes.
A obra que escolhi pertence a uma coleção, toda ela exposta na mesma sala, que representa o abuso sexual e doenças sexualmente transmissíveis e a fotografia que escolhi é “uma fotografia intrusa”, na medida em que é a única que não apresenta explicitamente os referidos temas. E é talvez por isso que, a meu ver, esta fotografia mostra de uma maneira mais profunda e assustadora o que é ser uma vítima desses abusos.
A fotografia deixa-me desconfortável e nervoso pelo simples facto de que a obra foi feita de maneira a parecer uma cena de filme de terror: o olhar da personagem que é neutro, mas que me suscita desespero e medo pois ela parece estar escondida atrás do que poderão ser cortinas. Esta é a obra que mais me marcou, pois critica um assunto que é muito sensível e que muitas pessoas preferem fingir que não existe, o que, no meu entender, não deve acontecer.
Olhando para esta obra, a música que associo é a “Dance of the Knights “de Prokofiev - https://www.youtube.com/watch?v=bBsKplb2E6Q - pois cria um clima de tensão como o que vemos na obra de Cindy Sherman. Esta música parece descrever a fotografia que escolhi, pois parece relatar o que se estará a passar e o que a personagem estará a sentir. Para mim, esta peça de Prokofiev é extremamente descritiva e suscita-me um sentimento de nervosismo e ansiedade pois a música apresenta um ritmo marcado parecendo até a descrição de passos pesados e uma melodia que remete a uma tentativa de fuga. Na minha opinião, esta obra musical, narra-nos uma perseguição de um suposto homem à mulher que vemos na obra de Cindy, mas depois desta perseguição parece instalar-se um momento de otimismo e um sentimento de quem vai sair em breve desta situação aterradora, sendo de seguida novamente surpreendida por um momento de tensão ainda maior.
Vasco Alves, março 2023
"Untitled #123" (1983)
Falstaff e a esbelta cosmética da moda ...
Escolhi analisar uma fase importante de Cindy Sherman, a série Untitleds de 1983 onde a fotógrafa começa a manifestar o humor sombrio que vai, a partir daqui e cada vez mais, dominar as suas obras. Esta série marca um ponto de viragem que foi, em primeiro lugar, uma reação contra a indústria da moda que a tinha convidado para realizar ensaios fotográficos e, posteriormente, tentado modificar e suavizar os resultados.
Nas suas fotografias de moda, como a Untitled #123 que escolhi, Sherman construiu uma crítica sarcástica à alta-costura e aos padrões que esta defende, numa oposição ao sedutor verniz dessa mesma alta-costura. Nessas fotos, a artista introduziu simulações grotescas, como dentes postiços, maquiagem exagerada e poses nada elogiosas, para diminuir a conveniência do produto, destacando a sua aparência artificial. Assim como no seu Untitled Film Stills (1977-80), Sherman investigou personagens femininas cheias de clichês roubadas de filmes de série B dos anos 1950 - a ingénua, a estrela chique, a bibliotecária sedutora - Untitled # 123 ridiculariza os maneirismos da beleza feminina defendida em anúncios de moda. Essas fotografias usam iluminação forte e brilhante e cores de alto contraste. As personagens são teatrais e exageram nos seus papéis.
Na minha opinião, estas representações pretendem gozar sarcástica e grotescamente o tipo de imagem feminina orientada para o consumo erótico e inverte os códigos convencionais de atração e elegância femininas. Enquanto a linguagem da fotografia de moda valoriza estereótipos de beleza assentes nas leveza e magreza dos corpos, de forma que as modelos parecem desafiar a gravidade, as figuras de Sherman são pesadas em corpo, aterradas ao solo. A sua falta de autoconsciência roça o exibicionismo. E elas fazem poses profissionais para mostrar roupas que exageram os seus corpos desajeitados, que são exagerados mais uma vez pela iluminação e o ângulo da câmara fotográfica.
Não há absolutamente nada de natural nessa resposta à esbelta cosmética da moda. Ao contrário, as imagens sugerem que a oposição ao corpo perfeito da manequim é o grotesco, e que o corpo suave e liso, polido pela fotografia, é uma defesa contra um
Falstaff e a esbelta cosmética da moda ...
Escolhi analisar uma fase importante de Cindy Sherman, a série Untitleds de 1983 onde a fotógrafa começa a manifestar o humor sombrio que vai, a partir daqui e cada vez mais, dominar as suas obras. Esta série marca um ponto de viragem que foi, em primeiro lugar, uma reação contra a indústria da moda que a tinha convidado para realizar ensaios fotográficos e, posteriormente, tentado modificar e suavizar os resultados.
Nas suas fotografias de moda, como a Untitled #123 que escolhi, Sherman construiu uma crítica sarcástica à alta-costura e aos padrões que esta defende, numa oposição ao sedutor verniz dessa mesma alta-costura. Nessas fotos, a artista introduziu simulações grotescas, como dentes postiços, maquiagem exagerada e poses nada elogiosas, para diminuir a conveniência do produto, destacando a sua aparência artificial. Assim como no seu Untitled Film Stills (1977-80), Sherman investigou personagens femininas cheias de clichês roubadas de filmes de série B dos anos 1950 - a ingénua, a estrela chique, a bibliotecária sedutora - Untitled # 123 ridiculariza os maneirismos da beleza feminina defendida em anúncios de moda. Essas fotografias usam iluminação forte e brilhante e cores de alto contraste. As personagens são teatrais e exageram nos seus papéis.
Na minha opinião, estas representações pretendem gozar sarcástica e grotescamente o tipo de imagem feminina orientada para o consumo erótico e inverte os códigos convencionais de atração e elegância femininas. Enquanto a linguagem da fotografia de moda valoriza estereótipos de beleza assentes nas leveza e magreza dos corpos, de forma que as modelos parecem desafiar a gravidade, as figuras de Sherman são pesadas em corpo, aterradas ao solo. A sua falta de autoconsciência roça o exibicionismo. E elas fazem poses profissionais para mostrar roupas que exageram os seus corpos desajeitados, que são exagerados mais uma vez pela iluminação e o ângulo da câmara fotográfica.
Não há absolutamente nada de natural nessa resposta à esbelta cosmética da moda. Ao contrário, as imagens sugerem que a oposição ao corpo perfeito da manequim é o grotesco, e que o corpo suave e liso, polido pela fotografia, é uma defesa contra um