NÃO É TRADIÇÃO. NÃO É CULTURA. É CRIME.



 A intolerância da MGF : mutilação genital feminina

        A MGF é um assunto muito debatido no mundo atual e pode ser avaliado em função de diferentes perspetivas filosóficas sobre a natureza dos valores que orientam as nossas escolhas e decisões. Essas perspetivas são três: a dos subjetivistas, a dos relativistas e a dos objetivistas.

      Um subjetivista diz que cada indivíduo sabe de si e ninguém deveria intrometer-se nas decisões tomadas pelo mesmo.

    Um relativista diz que cada cultura tem os seus costumes e devemos respeitar isso, concordando ou não.

       Um objetivista defende que devemos respeitar cada indivíduo com os seus valores, cada cultura com os seus costumes, mas existem certos direitos invioláveis.

      Eu apoio o objetivismo, pois concordo que devemos respeitar todo o tipo de culturas e tradições, mas existem limites, e esses limites são os direitos humanos. Nesta linha, eu não apoio nem tolero a mutilação genital feminina pois acredito que esta é uma violação dos direitos humanos, uma invasão do espaço da integridade física e psicológica e da dignidade moral da pessoa em causa.

       A MGF consiste na remoção parcial ou total da parte externa do órgão genital feminino ou outro dano provocado no referido órgão, sem razões médicas. Este ritual é mais recorrente, por tradição antiquíssima nalguns locais, sobretudo de África e da Ásia. Esta prática tem severas consequências a curto e longo prazo, físicas e psicológicas, como por exemplo infeções que podem levar à infertilidade, dor durante a menstruação, dor no ato sexual e complicações no parto.

      Eu defendo que a MGF é uma valente violação dos direitos humanos, como já tinha referido acima, e também acaba por ser uma manifestação da desigualdade de género pois apenas as mulheres são submetidas a uma prática deste género. A mutilação genital feminina é vista como positiva pelos valores dos grupos culturais que a põem em prática, mas é um ato tradicional que causa dor, mutila uma parte do corpo humano, sem razões médicas e precisa de parar! Hoje já existem programas que apelam à atenção das pessoas que foram educadas nas comunidades com essa tradição e as fazem perceber, chegar à conclusão, de que é um ato, mais do que aterrorizador, terrorista para o género feminino. Estes programas liderados pela UNICEF e pelo UNFPA são a melhor solução para combater este costume violentíssimo, pois esclarecem as comunidades praticantes sobre as consequências e a dor que causam às mulheres e raparigas e sobre o desrespeito que é realizar a MGF, visando assim protegê-las e, mais importante, fornecendo a informação necessária para a erradicação voluntária das mutilações, por parte das próprias comunidades.

      Eu acredito que o problema está na pouca informação que estas comunidades têm. A MGF é uma tradição muito antiga e associada à identidade cultural destes grupos de pessoas que, assim, continuam a praticá-la e a acreditar que esta é a única maneira de ter a certeza de que as raparigas permanecem puras. Através de sessões de diálogo e educação holística já 15 mil comunidades abandonaram a prática de MGF, ou seja, se acelerarmos o processo e levarmos o nosso conhecimento às comunidades que não têm acesso a ele, iremos pôr fim à mutilação genital feminina e nenhuma rapariga terá de ter medo.

       Concluindo, a mutilação genital feminina é um abuso dos direitos humanos e como tal deve parar! Podemos provar, através meios pacíficos, às comunidades que realizam esta prática, que não é a única maneira de integrar a pureza na vida de alguém. Respeito e aprecio diferentes culturas, com tradições diferentes, mas os direitos humanos são algo que demorou a ser construído e é algo a que todos deveríamos prestar atenção sempre. Como mulher jovem, tento pôr-me no lugar das raparigas que foram submetidas ou têm medo de ter de passar por este ritual e só de pensar fico aterrorizada, pois nasci com a capacidade de sentir prazer, de ter filhos saudáveis, de ter uma vida saudável e feliz, e pensar que alguém pode tirar tudo isso de mim e sem o meu consentimento, assusta-me. Não devemos obrigar estas sociedades a parar com as suas tradições pois faz parte da história delas e devemos respeitar a história identitária de todos os povos, mas temos de lhes fazer chegar aos ouvidos que esta prática magoa e mutila as mulheres física, psicológica e moralmente, para o resto das suas vidas e de forma irreversível.

      Na minha opinião, o respeito pela integridade e dignidade de todo e qualquer ser humano é um dos melhores e mais valiosos valores que existe, pois é preciso tê-lo para viver bem em sociedade. Mas respeito implica respeitar os direitos humanos e conhecer os limites do próximo.

“A liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro.” – Herbert Spencer

                                                                                 Leonor Marques, em janeiro de 2022




Que perspetiva acerca dos valores nos oferece

as melhores razões contra a intolerância? 


Bem, o subjetivismo promove a tolerância pelas diferentes opiniões e diferentes escolhas morais de cada indivíduo e, assim, não há nenhuma verdade certa, já que a verdade dos juízos morais depende do ponto de vista de cada um. Na minha opinião, o problema desta perspetiva é que, permitindo que qualquer valor moral seja tomado como verdadeiro, por mais desumano que seja o ponto de vista de alguém, não pode ser criticado já que a tolerância é o maior fator justificativo desta perspetiva. 

No relativismo cultural, a posição correta é determinada pelos valores morais de cada cultura, ou seja, uma ação de um indivíduo só é considerada correta se a sua cultura tolerar essa ação e a valorizar. Na minha opinião, o problema desta perspetiva é que por muito que todas culturas devam ser respeitadas por ter os seus próprios valores morais, acho que existem ações que deviam ser universalmente intoleráveis. 

E assim chegamos ao objetivismo, a perspetiva que defendo. No objetivismo, existem valores morais universais que não dependem de nenhuma perspetiva individual nem de padrões morais culturais. Esta perspetiva também tem como base os direitos humanos como valores objetivos e defende que deviam ser globalmente utilizados como referência para determinar o que é tolerável e o que não é. Acredito que só assim é possível ter uma sociedade justa em que independentemente da nossa cultura, etnia, religião, preferência política, conseguimos aproximar-nos de consensos sobre o que é moralmente errado e o que é moralmente correto. 

Neste texto, resolvi refletir sobre a mutilação genital feminina e como as várias perspetivas veem este caso prático. 

Para os subjetivistas, a excisão feminina não consensual é totalmente aceitável se o responsável por esta prática achar que a ação que está a fazer é moralmente correta. 

Nenhum subjetivista pode dizer que não se deve fazer isso ou que se trata de um caso moralmente intolerável já que, neste ponto de vista, não é possível justificar nem a justiça desta ação nem a sua injustiça. 

Para os relativistas, a excisão feminina tem de ser tolerável se o responsável por esta ação for de uma cultura que a defenda como valor tradicional e padrão identitário do grupo. Assim, de acordo com os relativistas, ninguém pode criticar este costume já que, sendo de uma cultura diferente, as pessoas têm o direito de não ser criticadas pelos valores históricos da sua comunidade. 

E finalmente, para os objetivistas, a excisão feminina é completamente intolerável pois, os direitos humanos proclamam que, independentemente da cultura, etnia e religião todas as pessoas devem ser livres e iguais em dignidade e direitos, e que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”  

Daqui conclui-se que o único impedimento para uma sociedade unida, justa e igual é o desrespeito pelos direitos humanos que defendem a integridade física e moral do indivíduo e o seu direito à autodeterminação informada. Acho que ao educar respeitosamente todas as culturas e comunidades, mostrando com informação e argumentação razoável, que há valores que não se devem violar é o maior passo para mostrar que só devemos ser intolerantes com a intolerância. 

Vicente Almeida, em janeiro de 2022